Antinomia entre leis

Não é incomum ocorrer contradição entre leis. Esse fenômeno acontece tanto por descuido como ausência de integração sistêmica entre os diversos entes legislativos país afora.

Quando a antinomia se dá entre normas com diferença hierárquica, a solução torna-se menos complexa uma vez que a norma superior sempre prevalecerá sobre a inferior na hierarquia. Exemplo: nenhuma lei pode se contrapor à Constituição Federal, também chamada de Lei Maior dada a sua supremacia hierárquica. Quando há uma antinomia entre uma lei e a Constituição, um dos remédios utilizados é a ação direta de inconstitucionalidade, que leva a divergência à apreciação do Supremo Tribunal Federal para que o mesmo declare a afronta da lei inferior.

Sobre a hierarquia das leis, é brilhante o comentário do Conselho Nacional de Justiça – CNJ: “Considerada uma das mais modernas e extensas do mundo, a Constituição Federal de 1988 elenca os direitos individuais e coletivos dos brasileiros, com destaque à proteção da família, da cultura, dos direitos humanos, da educação e da saúde. Por essa razão, é considerada a lei maior do ordenamento jurídico nacional, composto por vários normativos. A hierarquia entre as leis é essencial a esse ordenamento, em especial para garantir o controle de constitucionalidade das normas ou para solucionar eventual conflito entre elas. Abaixo da Carta Magna e de suas emendas estão as leis complementares, que têm como propósito justamente regular pontos da Constituição que não estejam suficientemente explicitadas. Na hierarquia das leis ocupa uma categoria intermediária entre a CF e as leis ordinárias. Pode tratar dos mais diversos assuntos. A Lei Orgânica da Magistratura Nacional, a Lei de Responsabilidade Fiscal e o Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte são exemplos de leis complementares. As leis ordinárias ocupam o terceiro lugar no ordenamento jurídico brasileiro. Trata-se de normas de competência exclusiva do Poder Legislativo. Essas matérias precisam ser discutidas e aprovadas por deputados ou senadores e, posteriormente, sancionadas pelo chefe do Poder Executivo, o Presidente da República. Como exemplos de leis ordinárias, temos os códigos em geral (Civil, Penal) e a lei sobre o regime jurídico dos Servidores Federais.” (CNJ Serviço: Conheça a Hierarquia das Leis Brasileiras, em 08 de outubro de 2018)

Competência para legislar

A Constituição Federal disciplina a competência da União, Estados, Distrito Federal e Municípios para legislarem. Contudo, há alguns aspectos dessa competência que são de ordem subjetiva e, naturalmente, acabam por gerar conflitos.

Uma suposição: é o que acontece com a competência legislativa dos Municípios. Assim prevê o artigo 30 da CF: Compete aos Municípios: I – legislar sobre assuntos de interesse local. A questão é saber o que fazer quando uma norma municipal é editada para atender um interesse local mas fere uma norma federal. Ambos, Município e União, editam leis nos limites de suas competências. Leis ordinárias, nos dois casos. Entretanto, as duas normas colidem entre si. Não há uma solução pronta para essa hipótese, que deverá ser analisada caso a caso pelo Poder Judiciário.

Código Florestal

Instituído pela Lei 12.727, de 25 de maio de 2012, o Código Florestal estabelece normas gerais sobre a proteção da vegetação, áreas de preservação permanente e as áreas de reserva legal; a exploração florestal, o suprimento de matéria-prima florestal, o controle da origem dos produtos florestais e o controle e prevenção dos incêndios florestais, tendo como objetivo primordial o desenvolvimento sustentável.

Entre os princípios do Código Florestal, destacam-se: ação governamental de proteção e uso sustentável de florestas, consagrando o compromisso do país com a compatibilização e a harmonização entre o uso produtivo da terra e a preservação da água, do solo e da vegetação; responsabilidade comum da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, em colaboração com a sociedade civil, na criação de políticas para a preservação e a restauração da vegetação nativa e de suas funções ecológicas e sociais nas áreas urbanas e rurais.

Conflito concreto entre legislação federal e o Código Florestal

O conflito concreto que será abordado se deu em Lauro Muller, Santa Catarina, cidade que fica a duzentos quilômetros da capital Florianópolis, e envolveu o licenciamento para a edificação e operação de um posto de combustíveis que margearia um rio que atravessa a localidade.

A controvérsia repousa em qual norma incide no caso concreto – hipótese de construção em zona urbana na margem de rio –, tendo em vista que o Código Florestal (Lei n. 12.651/2012) estabelece como área de preservação permanente toda a vegetação natural localizada a 50 metros dos rios ou de qualquer curso de água, com largura mínima de 10 a 50 metros. Ocorre que a Lei n. 6.766/1979 estabelecia proibição de apenas 15 metros do curso de água. O caso teve julgamento final no Superior Tribunal de Justiça, sob a relatoria do Ministro Og Fernandes.

Nesse aspecto, cumpre observar a previsão legal em choque, respectivamente o artigo 4º, I, “b” do Código Florestal (Lei n. 12.651/2012) e o art. 4º, III da Lei de Parcelamento de Solo Urbano (Lei n. 6.766/1979):

Código Florestal – Art. 4º. Considera-se Área de Preservação Permanente, em zonas rurais ou urbanas, para os efeitos desta Lei:

b) 50 (cinquenta) metros, para os cursos d´água que tenham de 10 (dez) a 50 (cinquenta) metros de largura.

Lei de Parcelamento de Solo Urbano – Art. 4o. Os loteamentos deverão atender, pelo menos, aos seguintes requisitos:

III – ao longo das águas correntes e dormentes e das faixas de domínio público das rodovias e ferrovias, será obrigatória a reserva de uma faixa não edificável de 15 (quinze) metros de cada lado, salvo maiores exigências da legislação específica.

Mediante análise teleológica, compreendeu-se, no julgamento, que a Lei de Parcelamento Urbano estabeleceu uma proteção mínima às margens dos cursos de água, uma vez que indica uma proibição inicial a construção à margem imediata, delegando à legislação específica a possibilidade de ampliar os limites de proteção. Dessa forma, o Superior Tribunal de Justiça considerou o Código Florestal mais específico, no que atine à proteção dos cursos de água, do que a Lei de Parcelamento de Solo Urbano.

Por essa razão, asseverou o Ministro Relator Og Fernandes, a preservação do meio ambiente tornou-se axiologia preponderante nas sociedades contemporâneas, integrando o rol de direitos humanos, tendo em vista sua essencialidade na sobrevivência da espécie. Com efeito, acrescentou, a preservação ambiental integra os direitos fundamentais de terceira geração incorporados no texto da Constituição Federal, e reduzir o tamanho da área de preservação permanente, com base na Lei de Parcelamento do Solo Urbano, afastando a aplicação do Código Florestal, implicaria verdadeiro retrocesso em matéria ambiental.

Vê-se que, no caso concretamente analisado, o conflito legislativo pendeu para o lado da legislação mais específica e focada no meio ambiente, o Código Florestal. Além disso, pesou muito na interpretação e decisão do Tribunal o apelo à necessidade de observância do desenvolvimento econômico sustentável.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *