O Código de Ética Médica (CEM) prevê que “a medicina é uma profissão a serviço da saúde do ser humano e da coletividade e será exercida sem discriminação de nenhuma natureza”. Estende-se isso para o médico e para seu paciente, guardando absoluto respeito pelo ser humano e atuando sempre em seu benefício. Vale destacar, também, a previsão de que “O médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje, excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente.”
Assim, o referido Código, acatando o pensamento mundial que rege a matéria, estabeleceu um canal de comunicação verdadeiro e ativo entre o médico e o paciente. É notório que o médico é dotado de conhecimento especializado sobre determinada área e sua palavra é de vital importância para a solução da moléstia apresentada, mas às pode não coincidir com a opinião do paciente, que opta por outro procedimento.
O CEM também faz inserções pontuais nas diversas restrições à ação do médico, de interesse relevante para o tema abordado. Traz uma regulamentação destinada à proteção dos Direitos Humanos e estabelece que é vedado ao médico “deixar de obter consentimento do paciente ou de seu representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso de risco iminente de morte” e “deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua autoridade para limitá-lo”.
Ademais, é direito do médico indicar o procedimento adequado ao paciente, observadas as práticas cientificamente reconhecidas e respeitada a legislação vigente. Por outro lado, é vedado ao médico deixar de usar todos os meios disponíveis de promoção de saúde e de prevenção, diagnóstico e tratamento de doenças, cientificamente reconhecidos e a seu alcance, em favor do paciente.
A autonomia do paciente também não pode ser esquecida, uma vez que sua vontade deve ser respeitada no tratamento, desde que adequada ao caso e cientificamente reconhecida e, sobretudo, quando não põe em jogo a sua vida.
Nesse sentido foi o Parecer nº 4/2020, do CFM, que discorreu sobre o uso da cloroquina e hidroxicloroquina, em condições excepcionais, para o tratamento da COVID-19. No documento, o Conselho deixou claro que a decisão sobre o uso dos medicamentos fica a critério do médico assistente, em decisão compartilhada com o paciente, sendo ele obrigado a relatar ao doente que não existe, até o momento, nenhum trabalho que comprove o benefício do uso da droga para o tratamento da COVID-19, explicando os efeitos colaterais possíveis, e obtendo o consentimento livre e esclarecido do paciente ou dos familiares.
Quando o paciente revela sua opção por um determinado tratamento, o médico deve, sempre que possível e adequado ao caso concreto, assegurar que a sua vontade será respeitada por ele ou por profissional substituto, nos casos de objeção de consciência.
Humanização e respeito à autonomia do médico e do paciente – cada uma com seus limites, informação detalhada e registrada, bem como atualização científica do profissional – são os pilares de uma relação médico-paciente de sucesso, seja dentro ou fora do contexto atual de pandemia. Os riscos para o médico, quando esses princípios são observados, não desaparecem, mas também não assombram.
É um direito e também um dever do médico prescrever o melhor tratamento, de acordo com as práticas cientificamente reconhecidas. Porém, o fato é que ainda não houve tempo hábil para que a ciência determinasse com segurança qual o melhor tratamento para a COVID-19. Por esse motivo, o Conselho Federal de Medicina (CFM) se manifestou, através do parecer nº 4/2020. Através desse documento, o CFM, apesar de não recomendar, autoriza que o médico prescreva a cloroquina e hidroxicloroquina, mesmo em pacientes com sintomas leves, desde que sob decisão compartilhada com o paciente.
Para isso, não basta que o médico obtenha do paciente o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, é necessário que cumpra, de maneira efetiva, o dever de informar. É preciso deixar claro (e não apenas formalizar no papel), que se trata de um tratamento sem eficácia comprovada, bem como explicar sobre os possíveis efeitos colaterais, os riscos e os benefícios.
Ademais, é preciso ter em mente que o Termo de Consentimento não serve como blindagem jurídica para o médico. A obtenção do consentimento, em decisão compartilhada, não exime o profissional de responsabilidade por eventuais danos ocasionados ao paciente.
Em 20/05/2020, o Ministério da Saúde divulgou sua recomendação para uso da cloroquina e hidroxicloroquina em pacientes de COVID-19, mesmo em caso de sintomas leves. Trata-se de uma orientação, que não afeta a autonomia do médico assistente para prescrever o tratamento que entender adequado.
Em suma, tem-se resguardada a autonomia do médico para deliberar sobre qual o tratamento entende ser o mais adequado, com base nos estudos já divulgados e sempre respeitando o princípio da beneficência. Além disso, deve ser criterioso no que tange a autonomia do paciente e o dever de informação, para que a tomada de decisão compartilhada seja feita de modo consciente.
Rodrigo Carlos de Souza, sócio e fundador de Carlos de Souza Advogados, Secretário Geral Adjunto e Corregedor Geral da OAB/ES, Vice-Presidente da Comissão Nacional de Compliance Eleitoral e Partidário da OAB e Diretor do CESA – Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (Seccional Espírito Santo).
Letícia Stein Carlos de Souza, Acadêmica do 3º. Período da Faculdade de Direito de Vitória e Estagiária de Direito.
Artigo publicado no Jornal Online Folha Vitória : https://www.folhavitoria.com.br/geral/blogs/direito-ao-direito/2021/05/19/autonomia-do-medico-e-o-tratamento-do-paciente-em-casos-de-covid-19/