A Insolvência Transnacional no Ordenamento Brasileiro

O ordenamento jurídico brasileiro permite socorrer a insolvência de sociedade empresarial existente no exterior, a chamada insolvência transnacional? Essa é a pergunta que iremos responder ao longo deste ensaio. A Lei nº 11.101/2005, que trata da recuperação judicial, extrajudicial e falência no Brasil diz que o juízo do local do principal estabelecimento do devedor ou da filial de empresa que tenha sede fora do Brasil possui competência para homologar o plano de recuperação extrajudicial/deferir a recuperação judicial ou decretar a falência. O grande problema que se coloca é quando há, por exemplo, sociedade empresária que idealiza vencer a crise econômica e financeira instalada via pedido de recuperação judicial no Brasil, entretanto, seu principal estabelecimento se localiza fora dele. Alguém dirá que não há saída para este problema, sendo inviável o acionamento do Poder Judiciário canarinho para responder ao pleito, por falta de previsão na legal, porém, ousamos respeitosamente discordar deste raciocínio. Caminhou bem o legislador brasileiro ao franquear a aplicação subsidiária da Lei nº 13.105/2015 (popularmente conhecida como Código de Processo Civil) à Lei nº 11.101/2005. E porque isso é importante ao contexto deste ensaio? Porque na lei subsidiária há previsão nos seus artigos 21, II, 22, inciso III, de que a autoridade brasileira tem competência para processar e julgar ações cujas partes se submetam à jurisdição nacional. Portanto, na hipótese em que a sociedade for estrangeira com estabelecimento principal situado fora do Brasil, o pedido de recuperação poderá ser processado no Brasil, desde que ela se submeta às regras nacionais. Essa resposta positiva do ordenamento jurídico brasileiro à insolvência transnacional, inclusive nesta circunstância, encontra guarida no princípio da cooperação jurídica entre as nações. Convém salientar que há um esforço internacional para viabilizar este tipo de prática por parte da própria Organização das Nações Unidas (ONU), através do seu órgão United Nations Commission on International Trade Law (UNCITRAL), que editou lei modelo com escopo de tratar da crise da empresa transnacional, “cross-border insolvency”. Diante do que dissertamos aqui, sem exaurimento da matéria, é tranquilo extrair o entendimento de que o Brasil tem ordenamento jurídico bastante evoluído que lhe permite tratar da insolvência transnacional, afinado que está ao princípio da cooperação entre as nações, fazendo prova disto as várias decisões já prolatadas.

‘Um Panorama Sobre a Nova Lei da Recuperação e Falência’

No último dia 25/11/2020, o Senado Federal aprovou o Projeto de Lei nº 4.458/2020, apelidada de nova lei de reestruturação empresarial e falência, que agora aguarda a sanção presidencial, motivo de grande entusiasmo na comunidade jurídica, dadas as sensíveis mudanças operadas em relação ao texto da lei hoje vigente, nº 11.101/2005. O progresso das ideias propiciado pelo avanço vertiginoso da tecnologia e da ciência, inclusive a ciência do direito, imprime no seio social grandes mudanças, e com isso, a reboque, tem-se a necessidade de a legislação acompanhar toda essa metamorfose, para que continue tendo eficiência. Um novo tempo requer um novo direito, como sempre defendeu o saudoso jurista italiano, Cezare Vivante. Portanto, todo aquele mencionado entusiasmo com a nova lei não é sem sentido, pois, uma visão panorâmica sobre o seu texto permite o raciocínio de que boas incrementações serão colocadas em prática. Por isso, vamos aqui selecionar algumas alterações que a nova norma traz, tema que certamente permeará outras abordagens neste blog. Quem já ouviu falar no dip financing (debtor in possession financing)? Trata-se de um empréstimo destinado ao empresário em recuperação judicial, pouco realizado pelos bancos ante os riscos envolvidos, e que a gora está presente na nova lei como importante ferramenta capaz de afastá-lo do risco da falência. A nova lei traz também a possibilidade de parcelamento das dívidas com a União, aumentando o número de prestações de 84 para 120, sem prejuízo da possibilidade de a empresa quitar 30% da dívida consolidada e dividir o que sobrar em até 84 parcelas. Ao lado disso, outra novidade é a transação tributária através da Lei 13.988/2002, onde está previsto que o Governo pode propor descontos de até 70% da dívida. Por sua vez, tema polêmico que está presente na nova lei é a apresentação do plano de recuperação pelos credores. Além disso, colhe-se do Projeto de Lei nº 4.458/2020, o reforço sempre bem-vindo do uso da mediação e conciliação no trâmite da recuperação judicial. Temos ainda, para finalizar este ensaio, o esforço do legislador em permitir o rápido recomeço do falido à atividade empresarial, o “Fresh Start” norte-americano, que será imediato quando não houver bens ou quando os existentes forem insuficientes para as despesas do processo, ou em 3 anos a partir da decretação da falência, tempo que hoje é de 5 anos. Nesta conformidade, há muito mais motivos para aplaudir o projeto de lei objeto deste artigo, do que para criticá-lo, estando nele encarnados grandes avanços ao desenrolar do processo de reestruturação empresarial, e com isso ganham o empresário, o credor, a sociedade e principalmente a economia que a todos favorece.

A Possibilidade da Consolidação Substancial

O último artigo que escrevi no Blog Direito ao Direito do Folha Vitória tratou de averiguar o que é, como se aplica e quais são as vantagens da chamada “Consolidação Processual”, que em apertado resumo consiste na admissibilidade de duas ou mais empresas formularem pedido de recuperação judicial, desde que em grupo econômico de direito ou de fato. O conteúdo na íntegra se encontra em https://www.folhavitoria.com.br/geral/blogs/direito-ao-direito/2020/10/28/a-consolidacao-processual-na-recuperacao-de-empresas/. Para situar o leitor, o artigo anterior tem relação direta com o presente artigo, porque, a partir do momento em que se admitem duas ou mais empresas formulando único pedido de recuperação judicial, deve-se procurar explorar se elas poderiam apresentar ao juiz da causa também um único plano de recuperação, o que se denomina de consolidação substancial, ou planos distintos, para cada uma delas, já que em sede de grupo econômico de direito ou de fato entre elas não se confunde a personalidade jurídica e o patrimônio. Embora se reconheça a existência de controversia na matéria em comento pela ausência de disposição expressa do legislador, o ordenamento jurídico em vigor no país não deixa de fornecer subsídios ao entendimento de que é possível a apresentação de único plano de recuperação, a exemplo da doutrina, jurisprudência e dos princípios gerais do direito aplicáveis ao sistema de reestruturação empresarial. Inclusive, estudiosos do assunto fazem ecoar o raciocínio de que a apresentação de um único plano seria mais benéfico aos credores – com o que se concorda a depender muito da situação concreta –, haja vista ser possível vislumbrar ali o esforço da pluralidade empresarial em prol da quitação dos seus débitos, o que poderia ser sinônimo de plano de recuperação judicial bem-sucedido. Entretanto, mercê da viabilidade jurídica existente, indaga-se: quem tem a palavra final sobre o plano único, o juiz da causa ou a Assembleia Geral de Credores? A nosso ver, a palavra final é da Assembleia Geral de Credores, pois, o plano único toca fundo em questões de conveniência econômica e financeira que não dizem respeito ao juiz da causa, estando este adstrito apenas à análise da sua legalidade, em respeito ao artigo 58, da Lei nº 11.101/2005. A conclusão que se obtém, portanto, é simples e direta, a consolidação substancial – plano único de recuperação judicial – não é ilegal, e sua aprovação deve ser feita pela Assembleia Geral de Credores, superada a análise da sua legalidade pelo Poder Judiciário.

A Consolidação Processual na Recuperação de Empresas

A consolidação processual no âmbito da recuperação de empresa tem a ver com pluralidade, isto é, saber se mais de uma empresa, de forma conjunta, pode pedir recuperação judicial. A leitura dos artigos 47 e 48 da lei 11.101/2005 permitiria imediata resposta negativa, vez que o legislador não permitiu tal hipótese, ao contrário, foi expresso em legitimar apenas o devedor singular, e não os devedores (plural) para aquele pleito. Esta concepção vem sendo ultrapassada no campo doutrinário e também dos tribunais, de onde nascem as decisões que resolvem os casos concretos. O legislador não é capaz de pensar todas as circunstâncias fáticas, para que elas sejam reguladas apenas pelo texto frio e por vezes “amarrado” da lei, sendo que de tempos em tempos esta deve ser aperfeiçoada para acompanhar o dinamismo social, e é justamente por isso que é admissível que duas ou mais empresas sejam parte ativa (litisconsórcio ativo – consolidação processual) no mesmo pedido de recuperação. Entretanto, a pergunta que não quer calar é a seguinte: em qual situação isso pode ocorrer, e qual é a sua razão de ser? Tal permissão vem sendo concedida pelo Poder Judiciário apenas aos casos de grupos econômicos de direito e de fato. Grosso modo, grupo econômico consiste em um conjunto societário, este composto pela sociedade controladora e pela sociedade controlada, com individualização do patrimônio e personalidade, não podendo haver confusão neste sentido. A formalização da sua existência se dá pela celebração de uma convenção, grupo econômico de direito, conforme rezam os artigos 265 a 277 da Lei das Sociedades Anônimas nº 6.404/76, e do traço marcante de um controle comum naquele conglomerado de empresas, ainda que não convencionado e divulgado, como ocorre no caso dos grupos econômicos de fato. Vários benefícios justificam a razão de ser desta consolidação processual, podendo-se ilustrar alguns exemplos, sendo eles: maior preservação de todos os integrantes do grupo diante de única recuperação judicial; redução dos custos na administração do processo; uniformização das decisões judiciais; possibilidade da análise global pelo juiz da crise enfrentada pelo grupo; redução da morosidade processual. Portanto, embora o tema seja muito mais abrangente, tem-se que o instituto da consolidação processual nas recuperações de empresas é viável, válido e tem sido aplicado como um mecanismo primordial no sentido de permitir ao devedor a superação da crise econômico-financeira, merecendo ser cada vez mais difundido e sedimentado no ordenamento jurídico brasileiro.

Empresa em Recuperação Judicial Pode Participar de Licitação?

Saber se a empresa em recuperação judicial pode ou não participar de licitações públicas é matéria das mais controvertidas no Brasil, porque encontra opinião dividida dentro da doutrina especializada, como também na mentalidade dos juízes que decidem os casos concretos respectivos. A corrente que defende a ideia negativa, de que a empresa em recuperação não pode participar de processo licitatório lida com duas premissas, sendo uma mais específica, e outra mais abrangente e genérica. A primeira, a mais específica, é a de que a empresa em recuperação judicial não teria condições de satisfazer o requisito da qualificação econômica e financeira para concorrer com outras empresas no processo licitatório, e a segunda, mais abrangente e genérica, diz que todas as empresas, para participarem dos processos licitatórios, devem fazer prova – certidão negativa – de que não estão em recuperação judicial. No campo processual existe grande quantidade de decisões atreladas a esta corrente, a maior parte delas vinculadas à Lei nº 8.666/1993, responsável por regular as licitações e os contratos com a Administração Pública no país, citando como embasamento os artigos 27, inciso III, e 31, inciso II. Mas, com respeito a quem pensa diferente, ousa-se discordar em número e grau desta corrente, visto que ela não nos parece refletir a realidade prática e jurídica que origina, alimenta e impulsiona a recuperação judicial nos dias de hoje. Em primeiro lugar, a recuperação judicial não deve ser encampada com preconceito. A empresa que atravessa uma recuperação judicial não é empresa falida – embora não exista demérito na falência. A empresa sob recuperação deve deter viabilidade econômica – algo que precisa ser provado e reconhecido pelo juiz – está em busca da tutela protetiva do Estado para sair do problema consistente na deficiência de caixa. O problema de caixa das empresas é, infelizmente, algo corriqueiro em países de grande oscilação econômica, financeira e de mercado como o Brasil, e que mesmo assim mantém uma das mais altas e insustentáveis cargas tributárias do planeta, um verdadeiro paradoxo, diga-se de passagem. Em segundo lugar, a exigência da certidão negativa de recuperação judicial não pode ser levada às últimas consequências, haja vista que não é o que se traduz de qualquer legislação atualmente em vigor, pois, o que deve definir a participação ou não da empresa em recuperação judicial em processo licitatório é a sua capacidade econômica. Esta é a corrente mais acertada e evoluída sobre a matéria, com a qual nos afinamos, e tem ganhado cada vez mais espaço no Poder Judiciário brasileiro, especialmente através dos seus órgãos de cúpula, como o Superior Tribunal de Justiça, ocorrendo o mesmo dentro da Administração Pública, porque a Advocacia Geral da União que representa o Governo Federal em cenário judicial e extrajudicial, já emitiu parecer com este entendimento. Conclui-se, então, ser plenamente possível à empresa em recuperação judicial participar de processo licitatório, desde que na fase própria, que é a de habilitação, evidencie a sua capacidade econômica.