Durante muitas décadas o Brasil foi tido como um país fácil para os que não queriam pagar suas dívidas. Bastava não pagar, ir contestando a questão na Justiça e o processo se arrastaria durante anos até o credor desistir. Esse cenário realmente perdurou durante muito tempo, e foi péssimo para o país. Quem deve tem que pagar. Ressalvado ao suposto devedor, é claro, o direito de impugnar o mérito da dívida em si e alguma abusividade que tiver ocorrido.

Nos últimos tempos várias medidas foram sendo adotadas pelo legislador e pelas próprias autoridades, criando mecanismos de cobrança mais efetiva de dívidas. Bloqueio generalizado de contas correntes e veículos; alienação de imóveis no financiamento imobiliário, com a possibilidade de o credor tomar o imóvel no caso de inadimplência, sem que precise entrar na Justiça; protesto de débitos fiscais.

Essas medidas melhoraram em muito o ambiente de negócios no Brasil. Aquele que investe quer ter a segurança de que, caso alguém que adquira o bem comercializado não pague o valor acordado, o investidor terá meios de retomar o seu crédito, seja em dinheiro ou através do próprio bem. A eficácia legal na cobrança de débitos é vital para o crescimento econômico, a realização de investimentos e a segurança jurídica.

Dentro dessa linha, o Código de Processo Civil, atualizado em 2015, trouxe algumas normas muito importantes. Entre essas está o inciso IV do artigo 139 – O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe: determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária.

Prestação pecuniária significa pagamento de algum valor, ou cumprimento de obrigação de pagar uma dívida. A recente lei trouxe uma novidade subjetiva, aberta. O que seriam medidas indutivas e coercitivas para assegurar o pagamento de uma dívida? Como o legislador não se ocupou em particularizar essas medidas, publicada a nova legislação, os debates começaram no meio jurídico e empresarial. Opiniões as mais diversas e extremas.

Umas das correntes de interpretação levou a inúmeras ordens judiciais de suspensão de passaporte e carteira de habilitação. Os defensores desse pensamento dizem que, se a pessoa tem dívidas e não consegue pagar ao credor, como ela vai ficar viajando mundo afora? Dirigir um carro? Absolutamente não! Se o cidadão não paga a sua dívida, ele também não pode se dar ao luxo de conduzir um veículo. Vamos então suspender o direito de ele viajar para fora do país e de dirigir! Por mais absurda que possa parecer essa visão do assunto, o fato é que ela se fez valer.

Felizmente, no entanto, os tribunais brasileiros começaram a se posicionar em sentido contrário, revogando decisões de juízes que suspenderam o passaporte e a CNH de devedores. Não há como se sustentar esse tipo de restrição injusta e desmedida. Impedir a pessoa de dirigir e viajar para o exterior por causa de uma dívida não paga, equivale a um perigoso retrocesso na ordem democrática.

O Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região, no Rio Grande do Sul, foi firme ao mudar uma ordem judicial de primeira instância, sustentando que, apesar de o artigo 139, inciso IV, do NCPC dispor que incumbe ao juiz determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária, as medidas pretendidas pela exequente (suspensão da CNH, apreensão dos passaportes e cancelamento dos cartões de crédito dos executados) não se conformam aos ditames da proporcionalidade. De fato, os meios propostos não se mostram adequados, necessários ou proporcionais (stricto sensu) à finalidade visada, qual seja, o pagamento da dívida. A apreensão dos passaportes, por exemplo, não é capaz de ensejar a satisfação do crédito – por outro lado, atenta de forma grave contra o direito à liberdade de locomoção assegurado constitucionalmente.

O Superior Tribunal de Justiça – STJ também já se posicionou pela total impossibilidade de mera suspensão de passaporte e CNH para forçar o devedor a pagar uma dívida: “Noutro ponto, vale frisar que o reconhecido do mérito da inovação e fato de as regras modernas de processo, instituídas pelo código de 2015, preocuparem-se, primordialmente, com a efetividade da tutela jurisdicional, não é menos certo que essas novas diretrizes, em nenhuma circunstância, se dissociarão dos ditames constitucionais, constatação que remete à ideia de possibilidades de implementação de direito (cumprimento) que não sejam discricionárias (ou verdadeiramente autoritárias), por objetivos meramente pragmáticos, de restrição de direitos individuais. Vale dizer, pois, que a adoção de medidas de incursão na esfera de direitos do executado, notadamente direitos fundamentais, carecerá de legitimidade e configurar- se-á coação reprovável, sempre que vazia de respaldo constitucional ou previsão legal e na medida em que não se justificar em defesa de outro direito fundamental”.

Cobrar uma dívida é direito pleno do credor, mas abusar desse direito não pode ser admitido pelo nosso ordenamento jurídico.

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